terça-feira, 2 de junho de 2020

UM SHTETL CHAMADO JOSÉ BONIFÁCIO - GENERALIDADES

Este é o primeiro texto relativo às minhas lembranças sobre a comunidade judaica do Meyer. Não sou historiador, e, portanto, não me faço acompanhar de metodologia compatível com uma obra de maior profundidade e/ou abrangência.
O livro editado pelo Museu Judaico, com depoimentos de um número significativo de pessoas que viveram nos subúrbios da Central do Brasil já forneceu um panorama bem amplo a respeito, ajudando a suprir lacunas que ainda existem sobre a saga judaica em nossa cidade, não obstante trabalhos anteriores de Samuel Malamud, Zevi Ghivelder, Heliete Vaissman, etc...
A despretensão  sem importar descuido – vai ser a característica desses meus escritos, que se limitarão à área em que viveu a comunidade do Meyer. Já de saída, perpetro uma heresia, ao afirmar que a maior parte da comunidade não morava no Meyer, propriamente dito, e sim em bairros limítrofes, que constituem o hoje designado como Grande Meyer.
Partindo do eixo da Rua Arquias Cordeiro, considero que a Rua Coração de Maria marca a “fronteira” entre o Meyer e Todos os Santos, e a Rua Piauí assinala a divisa com o Engenho de Dentro. Nesse eixo, meu critério situa o término da esfera de atração do Meyer na Rua Guilhermina, esquina da Rua Goiás (Encantado), pois, a partir dali, inicia-se o “polo” Madureira. Na direção oposta, o encontro da Rua Arquias Cordeiro com a Rua Propícia assinala a divisa com o Engenho Novo. Assim, afastando-nos do leito deste lado da via férrea, integram o grande Meyer os bairros de Cachambi, Del Castilho, Pilares, Inhaúma e Abolição.
Do outro lado da estada de ferro, assinalado pelo eixo 24 de Maio/Amaro Cavalcanti, os extremos seriam o fim da Rua São Francisco Xavier (Rocha) e o Largo do Encantado, compreendendo, portanto, Riachuelo, Sampaio, Engenho Novo, Todos os Santos, Engenho de Dentro e Encantado.
Com esse introito “googleano”, que, face ao passar do tempo, considero ainda válido, chego ao ponto de partida do tema de hoje  Um shtetl chamado José Bonifácio.

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Na memória de nossos pais e  em alguns casos  avós, o shtetl era um povoado rural, muito frequente na Europa Central e na Europa Oriental, com maior ênfase para a Polônia, a Romênia e a Rússia (antes e após a criação da União Soviética), e destaque maior para determinadas repúblicas, como a Ucrânia, a Bielo Rússia, a Moldávia e a Lituânia. As populações giravam em torno de 5 a 10 mil pessoas, e, em muitas delas, o percentual de judeus chegava a 50% dos habitantes.


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Descrever a vida nos shtetls seria uma “chutzpá” imperdoável, após as obras de Scholem Aleichem, Bashevis Singer e muitos outros. São exatamente obras deste gênero, somadas aos depoimentos dos que lá viveram e dos aportes documentais, é que me permitem dizer que a Rua José Bonifácio era um shtetl transplantado para os trópicos.
Começava ela  como ainda começa  na Rua Arquias Cordeiro e terminava  como ainda hoje  na Av. D. Helder Câmara, antes Suburbana. Nela desembocavam a Travessa José Bonifácio, as Ruas Padre Ildefonso Penalba (antes, Tenente Costa), Geobert de Queiroz, Cirne Maia, Conselheiro Agostinho, Odorico Mendes e Major Mascarenhas, e era cruzada pela Rua Honório.
Nessa extensão aproximada de um quilômetro e meio  espraiando-se para a Rua Augusto Nunes, a maior das paralelas – em torno de 1000 a 1200 pessoas. Alguns detalhes dignos de nota eram a existência de edifícios (de 2 ou 3 pavimentos) em que todos os moradores eram judeus, e, também, a presença de 2 vilas  praticamente uma em frente à outra  em que 80% das casas eram ocupadas por judeus. Os demais se distribuíam em casas e em outros pequenos edifícios.
Como estavam todos empenhados na batalha sempre difícil dos imigrantes em busca dos ideais que acalentavam desde suas cidades natais, o convívio diário não era frequente, salvo entre vizinhos próximos, mas ele existia em ocasiões festivas, especialmente aniversários e bar-mitzvahs, numa época em que celebrações mais pomposas estavam fora de cogitações.
Sem deixar de lado oriundos de outras cidades, havia um liame um pouco maior entre os “landsman” (oriundos da mesma aldeia) ou entre os “shifbruder” (os que tinham vindo no mesmo navio. Ao contrário do que ocorria em Madureira, onde havia um grande equilíbrio numérico entre sionistas e os chamados “progressistas” (mais ligados à esquerda), a predominância dos primeiros na área do Meyer era esmagadora, não chegando a 10 os “progressistas”, e, mesmo assim (ou talvez por isso), inexistiam conflitos maiores.
O convívio maior ocorria na época das Grandes Festas (Rosh Hashaná e Yom Kipur), em que o salão do Centro Chaim Weizman era utilizado como sinagoga, com uma afluência muito grande.  Havia, também, uma outra sinagoga, localizada na Rua Magalhães Couto, próxima à Rua Dias da Cruz, e que era designada como Sinagoga Palatnik, com uma frequência menor, e cuja origem vale uma pesquisa. Estes polos de vivência comunitária demandam um estudo maior, que poderá, eventualmente, desembocar em outro texto similar a este.
Com uma frequência menor, verificavam-se encontros nos dois cinemas do bairro de Todos os Santos  o Roulien, na Rua Arquias Cordeiro, com poltronas de couro, mas sem ar refrigerado, e o Todos os Santos, mais no gênero “poeira”, com poltronas de madeira e um singular “ar refrigerado” (o teto era retrátil e se abria nas noites do calor, sempre muito forte, da região). 
O número de habitantes ortodoxos ou, até mesmo, mais ligados à religião, não era numeroso, embora o apego às tradições fosse acentuado. Além do açougue que fornecia carne kasher, os demais princípios da kashrut eram de difícil observância, obrigando deslocamentos até o centro da cidade, onde se localizavam alguns estabelecimentos, sobretudo nas áreas próximas à Rua de Santana e Praça da República. Entretanto, o abate ritual de galinhas era feito por um schoichet, que, principalmente aos domingos, chegava em plena madrugada, para desempenhar suas tarefas.
Esta é a primeira abordagem sobre o assunto, na qual preferi não declinar, desde logo, o lado humano dos habitantes do shtetl José Bonifácio com seus desdobramentos e características, o que demanda uma pesquisa mais apurada, a ser feita em outra ocasião.  


Ativistas da Hashomer Hatzair
na casa da família Sztyglic à
Rua Arquias Cordeiro, 676
(final dos anos de 1940)



                       

                    

11 comentários:

  1. Parabéns David pela idéia. Continue pois temos muito o que recordar.

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  2. Recordar é viver . Maravilhosa bons tempos .

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  3. Excelente..que histórico!..frequentei muito os cinemas roulien e todos os Santos (nesse em sessão dupla e preço único), minha irmã morou na transversal da José Bonifácio e eu garoto ainda em Maria da Graça. Parabéns pelo brilhante histórico. Abs. Ary

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  4. Meus bisavós Roitberg moraram no Meyer

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  5. Morei no Meyer até casar, nasci e fui criado ali, meus avós tinham o único açougue casher da área, na rua Arquias Cordeiro esquina com Rua José Bonifácio, Família Sender. Muiuiito legal, parabéns

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  6. muito bom !!! é a nossa memória !! e os judeus da leopoldina sinagoga de olaria, merecem uma recordação

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  7. estudei 1 ano no Bialik, Rua José Verissimo, em 1955 fiz o admissao. alguns professores Lerer Jaspan, Da. Lourdes Lossio, Da. Dirce de Geografia, alguns colegas Nina Zonis, Boris Bayer, Zilberberg,

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